Eu e o António
É dificil escrever sobre o que gostamos realmente.
Ando a ler – sim, a expressão é mesmo esta – ando a ler o 4º livro de crónicas do António Lobo Antunes. Sabem aquele que traz um CD com o senhor a ler algumas delas – e que estou a guardar, religiosamebnte, para quando acabar o livro me dar ao prazer de o ouvir ler com a entoação com que escreveu.
O António é assim: põe-me a ler um livro aos bocados, devagarinho, e sem usar marcador de páginas. E volta e meia, ah deve ter sido aqui que fiquei, não li esta, e ao chegar ao fim, afinal até tinha lido, que estranho, não me lembro de nada disto. Pois que as personagens se re-inventam no nosso imaginário de cada vez que lemos.
Tenho uma relação não de amor-ódio, mas de amor-receio com a escrita do António. Nos livros ele estende-nos a mão na capa e pergunta queres vir?. Aceite o convite, dá-nos a mão na primeira página e acompanha-nos um bocadinho. E depois... bom, depois damos por nós sózinhos e às escuras, alumiados pela luz dos nossos medos, a sós com a pessoa que somos cá dentro. Os livros do António não contam estórias: os livros do António fazem-nos recordar histórias. Histórias que não conseguimos pôr em palavras, que saem das nossas vísceras, e viajam até à garganta e de volta, e andam acima abaixo, arrepiam a espinha, e ás vezes fazem doer. Fazem doer a sério. Mas quando fechas o livro já não és o mesmo que o abriu: és um bocadinho mais. Um bocadinho mais tu.
Começar um livro do António é assim como que debruçar-nos sobre a toca do coelho na árvore da Alice de Lewis Carrol, e depois cair, desamparadamente e sem tempo. E António aqui será o gato de Sheshire, presente mas invisível, e a lagarta, que nos atira com um enigma e pronto. E a resposta a esse enigma está sempre dentro de nós, cabe-nos descobri-la. E com a escrita do António e os olhos da alma bem abertos, descobrimos.
Nestes dias, em que o António está a ser homenageado de inúmeras as maneiras, não posso deixar de considerar duas coisas: que ele merece todas as homenagens MAS que não me faz sentido uma peça de teatro e um filme inspirados em obras dele. Acho que foi ele (e peço desde já desculpa se não foi) que disse que gostava de poder estar presente, alguns anos após a sua morte, quando eruditos se debruçarem sobre as suas obras e elaborarem teorias explicativas do que... não é explicável.
Lobo Antunes para mim é uma tela de Jackson Pollock ou de Cy Twombly. É eu. Eu escarrapachada na tela entre pinceladas, ou escondida nas letras. E não sou eu que estou na entoação que dão às palavras na peça, ou nos diálogos dos personagens no filme. Os livros de Lobo Antunes não tem esquadria, espraiam-se para fora do volume, envolvem-nos como uma nuvem de fog. Os livros de Lobo Antunes não aceitam cabresto.
Ler as crónicas é um bocadinho fazer batota, assim como comer um rebuçado às escondidas... as crónicas não nos deixam cair na toca, ao contrário, fazem-nos saltar no trampolim, e acabar cada uma com um sorriso.
O que é bom, é tão bom que só pode ser pecado.