Eu, a Alice e o Tim Burton
Penso que nunca falei aqui da minha relação com o livro "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carrol. Digo já que não é, de todo, das melhores.
Li pela primeira vez a Alice quando era novinha; vá-se lá saber porquê, foi difundido que era um livro infantil... o próprio autor criou-o como uma estória para crianças, o que me pareceu sempre absurdo, dado todo o simbolismo que envolve o livro, numa primeira abordagem, no seu todo, e depois, dissecando cada personagem. Nem Bruno Bettelheim se referiu a ele no seu The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales [1976,Knopf, New York (trad. portuguesa: Psicanálise dos contos de fadas)] - aposto por considerar que este daria um livro per se.
Atentemos no contexto em que foi criado... estando o autor a fazer um pequeno cruzeiro com Alice, de 10 anos, e estando esta imensamente aborrecida, começou a contar-lhe uma estória, que acabou por ser mais tarde publicada. Alice foi, um dos pequenos grandes amores na vida de Charles Lutwidge Dodgson, A.K.A Lewis Carroll, que, segundo o próprio, gostava " de crianças (excepto meninos)"...
Dito isto, de uma mente decididamente retorcida e inflamada pelos seus ímpetos mais ou menos reprimidos, saíu Alice no País das Maravilhas. Quando o li pela primeira vez, num volume de capa preta e arabescos prateados, com as ilustrações originais, achei-o confuso e "pesado", tendo-o remitido para o fundo da prateleira. Meia dúzia de anos mais tarde voltei a pegar-lhe, mas larguei-o ao fim de poucas páginas, e decidi: Alice é uma obra de que não gosto. Penso que a dimensão da demência retratada no livro terá sido captada no seu melhor por Paula Rego, artista plástica que igualmente abomino (mas sobre esse ódio de estimação falarei noutro post).
E em meio a este disgust que sinto, surge o filme, por um dos meus realizadores-fétiche, com actores de que gosto à partida. Ambivalência será dizer pouco...
Talvez por isso não o terei ido ver mais cedo. Acabei por aceder, "a pedido de diversas famílias", a ir vê-lo e a pronúnciar-me sobre o mesmo. Sendo um Tim Burton, e estando a minha pikena encantada com o mesmo (o que de resto não era um bom augúrio, já que ela adora a Alice pelas mesmas razões que eu detesto), tendo-me no entanto advertido que não era Lewis Carroll mas sim Tim Burton que eu ia ver (o que, sim, foi música para os meus ouvidos), na segunda feira dei por mim com dois pares de óculos. Interiormente desconfortável.
Logo aos primeiros segundos, mal o símbolo dos estúdios Disney começa a desaparecer, comecei a sentir Tim Burton. E, concordando com a semi-obscuridade dos primeiros momentos, imagem e música (já que é precisamente essa a sensação que "Alice segundo Lewis Carroll" me provoca), deixei-me levar, com confiança no director.
E Tim Burton não me decepcionou. A estória, sequência do Alice no País das Maravilhas original, apresenta-nos uma Alice pós-adolescente, casadoira, que opta por refugiar-se no seu jardim secreto para fugir à responsabilidade de anunciar uma decisão que se afigura magoar os que a rodeiam. Vê-se então rodeado pelos personagens que conheceu antes, e que povoam as sus fantasias num misto de amor-ódio, atracção-repulsa, já que este é o mundo com que sonha quando tem pesadelos, mas no qual se encerra quando a realidade se torna difícil. E é precisamente neste mundo de fantasias recambolescas que vai perder-se a pequena Alice, e do qual vai emergir a mulher em que se tornou, assertiva e confiante.
A Alice do Tim Burton, e a única que me é possível envisajar sem querer bater em retirada.
Quem não o viu ainda em cinema não deve desesperar, já que este Alice não necessita de 3D, surgindo esta opção apenas como resposta à moda vigente (e sou só eu que nos intervalos dos 3D sinto vertigens?). Portanto, será sem sombra de dúvida um filme que virá fazer companhia aos Sweenie Todd, Nightmare Before Christmas, A Noiva Cadáver, Charlie e a Fábrica de Chocolate, Big Fish...
Notas de interesse ou nem por isso:
Tim Burton é, mais uma vez, igual a si próprio. Isto fará os seus admiradores deleitarem-se nas sequências rápidas e nos pormenores desconcertantes, e os não admiradores terem uma leve sensação de déja vu...
Johnny Depp está à altura do seu Mad Hatter, mas não deixa de ser "mais do mesmo"... uns pózinhos de Jack Sparrow aqui, muito Willie Woncka por todo o lado, e uns laivos de Sweenie Todd... bom, mas a correr sérios riscos de perder a sua capacidade de interpretação diversa. Não que ele esteja muito preocupado com isso...
Mia Wasikowska apresenta-nos uma Alice segura.
Anne Hattaway muito contida, numa interpretação geométrica, cadenciada por diretrizes do director, segundo me pareceu. A actriz está muito bem, o papel parecerá numa primeira abordagem, estranho.
Helena Boham Carter é... Helena Boham Carter. Irrepreesível.
A minha voz favorita, Alan Rickman, também marca presença...
Com este elenco, não há como não esperar maravilhas desta Alice (trocadilho sequinho, hum?)
Fátima