Como a má adaptação de um titulo pode fazer perder um grande filme...
Por isso, ontem senti mesmo necessidade de sair de casa, estava com vontade de pôr o pé na estrada e ir até ao fim do mundo! Acabei por me contentar em ir ao cinema - há meses que não o fazia - e entre os filmes disponíveis no horário que me convinha optei por ir ver "Trust-Perigo Online". Sobre o filme tinha lido uma ou outra crítica nada abonatória, mas a presença de Clive Owen deu-me segurança suficiente para não recear um mau filme - não me lembro de ter visto um que mereça tal carimbo filme com a sua participação.
Apesar da sinopse do filme não agurar mais de que uma fábula tipo capuchinho-vermelho-dos-tempos-modernos, [ideia só de si assustadora] tipo faz-o-que-te-disserem-acredita-nos-teus-pais-e-não-questiones, à boa maneira das mentalidades red-neck americanas... de bilhete na mão e com a 'cenoura Owen' na ponta da corda pendurada na frente do meu nariz, lá avancei sala adentro e ocupei o meu lugar.
Então, é assim: a adaptação do título para a versão portuguesa é tristemente redutora. TRISTEMENTE REDUTORA. É assim como se fosses ver uma exposição de Picasso e te dissessem que ias ver borrões de tinta (sinto-me suficientemente à vontade para usar este paralelo, já que nem sou grande fã de Picasso...). E tu entras, vês, sais, e o que é que respondes à pergunta o que viste? Provávelmente borrões de tinta. Podes até desenvolver um bocadinho, falar sobre o que viste, mas estarás condicionado pelo pré-conceito de que se tratariam apenas de borrões de tinta.
Ou seja, com esta retórica, o que quero é fazer um apelo: deixem a ideia "Perigo Online" na gaveta e peguem em "Trust". Sim, "Confiança" - porque diabo dar uma volta tão grande a uma coisa tão simples como a tradução deste título? Podia aventar teorias, mas isso agora não interessa nada...
O filme é muito bom. Melhor de que o rating do IMDB, que lhe dá 7,4/10 - o que nem é nada mau.
O plot parte de uma familia americana de classe média, casal com três filhos, que vê a vida virada do avesso porque a filha de 15 anos é violada por um predador sexual que conhece na Internet. E o título da distribuição portuguesa acaba mais ou menos aqui: passa-nos a ideia de que não nos devemos encontrar com estranhos que conhecemos na net, não devemos entrar no automóvel deles, não devemos aceitar lingerie de presente, não os devemos acompanhar a um hotel, principalmente se temos 15 anos e o alegado rapaz de 15 anos, que afinal tinha 20, mas não lhe tinha querido dizer que tinha na verdade 25 porque "não a queria afastar", tinha afinal 35 e esperava que "ela tivesse maturidade suficiente" para encarar a realidade, e bla-bla-a-canção-do-bandido e coiso. E não-devemos-contornar-os-conselhos-dos-mais-velhos-quendo-somos-uns-jovens-inconscientes, porque acabamos por tansformar a vida de todos - e a nossa - num inferno.
FIM.
Mas a verdade é que não. Não é o fim: é, isso sim, o início. Porque é a partir desta ocorrência que o filme começa na realidade. É a partir deste momento que as emoções começam a emaranhar-se, que se começam a criar teias de suspeição, de engano e decepção que assentam únicamente e só na confiança - e falta dela. Tal como logo à partida a ligação de Annie com Charlie era baseada numa confiança que se foi diluindo a ponto de nada mais restar de que uns fiapos a que Annie se agarra para não naufragar na evidência de ser possível tamanho 'decievement'/engano por parte de alguém que à partida tinha sido merecedor de toda a sua confiança. E esse é o início da primeira descida a pique nessa montanha russa.
Quem deve então ser fiel depositário da confiança em jogo? Deverá o pai depositar inteira confiança na adolescente que "se deixou violar" por um desconhecido que conheceu na net sem que lhe tivesse ocorrido pedir ajuda? Depois de ler as trascrições roubadas ao FBI - em clara quebra de etica/sigilo/confiança, quebrando o inviolável direito à privacidade de Anna - que o fazem duvidar da integridade moral da filha? E deve esta duvida sequer existir? O mesmo pai que está demasiado ocupado com o trabalho noite dentro para escutar os desabafos da filha, "atirando-a" para 'os braços' do confidente online, a 'unica pessoa com quem a mesma pode contar' ou assim pensa. O mesmo pai que, enquanto a filha se estilhaça por dentro, se consome no ódio que reflecte no prepetrador da traição a que ele próprio a confina quando verifica o telemóvel quando esta dorme. Que esquece, em meio a este turbilhão de emoções que o consome, que o ponto principal e fulcral da estória é a filha, não o violador, é a confiança entre todos os elementos que vai sendo sistematicamente quebrada, do inicio ao final da trama. A ponto de, estando o pai em casa a filha irromper intempestivamente escada acima e este, apesar de perceber que alguém entrou, nem sequer pensar em ir verificar quem e como o tinha feito.
Um elemento que surge ao longo do filme é o alarme da habitação que é ligado todas as noites, sendo usada uma expressão como "o forte está seguro". Só que o único alarme capaz de 'segurar o forte' é a comunicação interínseca, a capacidade de empatizar com o outro, dar o passo atrás e ver 'the bigger picture'. É, tão fácil - e tão difícil - como confiar, acreditar no outro e em si mesmo.
Mais um pormenor interessante é a luz do filme. A obscuridade - do ódio, da desconfiança da dúvida - começa às tantas a dar lugar a claridade - uma claridade dolorosa já que põe a nu as verdades a que se escusam enquanto tal não se torna inevitável e incontornável.
Posso adiantar, penso que sem que necessite de deixar aqui um aviso de 'spoiler alert', que no final emerge o evidente, como gosto de pôr, os personagens confrontam-se com a sua nudez emocional. E é aqui que começa tudo: acaba o filme com a promessa de recontrução.
Simplesmente brilhante