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Diário de uma "dona de casa" 2.0

... à beira de um colapso

Diário de uma "dona de casa" 2.0

... à beira de um colapso

Dom | 27.03.05

Referendem-se uns aos outros

Fátima Bento

Lendo eu uma opinião pró-vida no blog da Sofia ( www.blogseve.blogs.sapo.pt ), não pude deixar de dar a minha contribuição para o assunto.

Eu defendo a despenalização do aborto.

E acho que tenho pelo menos duas razões fundamentadas para o fazer. Vou começar pela segunda.

Estive no Garcia de Orta para fazer uma curetagem em Abril de 2003. Como as 'criaturas' que estavam de banco supostamente "tinham mais que fazer", ocupados que estavam no encaminhamento de grávidas em trabalho de parto, e acompanhamento de nados-vivos, de que se preocuparem comigo, puseram-me na sala das urgencias obstétricas, supostamente sob observação. Onde fiquei durante 21 horas a consumir frasco de soro atrás de frasco de soro, até que o chefe da Obstetricia na manhã seguinte, ao ver a minha ficha, deu uns berros aos médicos de serviço porque era impensável e desumano que eu já ali estivesse à tanto tempo à espera... então um médico veio ter comigo e convenceu-me que era melhor fazer a curetagem com anestesia local, porque o recobro era mais rápido.

E foi.

Em uma hora eu saía do hospital, pelo meu pé, em direcção a um Vitor quase tão devastado como eu. Levava um buraco na alma maior que o mundo, que não passou nos 6, nem nos 12 meses seguintes.

E a história, se a contarmos do principio, é que devido a sofrer habitualmente de disfunções hormonais, que se devem a um funcionamento anormal da tiróide, só me apercebi que estava grávida supostamente às 6 semanas - que depois se vieram a revelar 9 ou 10. Óbviamente poderão depreender que a gravidez não foi planeada, mas apaixonámo-nos pelo bébé assim que soubemos. Daqueles dias lembro os longos banhos de imersão com a Inês e o Tomás ao pé, a escolhermos nomes para o bébé que ia nascer. Até que um dia vi uma mancha de sangue do tamanho de uma moeda de 20 centimos nas cuecas. Falei com o médico que me disse que, como ia fazer uma eco na semana seguinte, para determinar ao certo o tempo de gestação, nessa altura saberiamos o que estava a provocar essa perda de sangue, mas que provávelmente seria normal. Ao fim de três dias, a moeda de 20 cent. transformou-se numa de 50, e decidi dirigir-me às Urgencias, onde fui vista por uma médica que, ao fazer a eco, descobriu que não haviam batimentos cardíacos. "De qualquer forma, e dado que já vi acontecerem tantas coisas, vá para casa e volte daqui a uma semana." O corpo encarregar-se-ia de "expulsar" o feto, ou então eventualmente, poder-se-ia encontrar batimentos nessa altura. De qualquer maneira, foi suficientemente convincente, para eu perder qualquer esperança. Na semana seguinte, fui vista por uma outra médica que me fez uma ecografia longa, onde descobriu um segundo feto, com um tamanho inferior ao primeiro, mas igualmente sem batimentos. Mandou-me para casa, explicando-me que o ideal sempre é o corpo fazer uma 'limpeza expontânea', mas de qualquer forma, se eu me sentisse "deconfortável" com a situação - dado que andava com dois fetos sem vida no útero à mais de uma semana - para me dirigir lá e pedir uma curetagem. Voltei para casa de rastos e deitei-me. Às 7 da tarde, uma imensa perda de sangue levou-me à casa de banho onde um sonorissimo "PLOC!" me fez saber que o corpo tinha feito a dita limpeza. Ou antes, parte dela. Continuei com hemorregias maciças, até que no dia seguinte fui internada nas urgencias, como contei no inicio.

Estive, então, 21 horas sózinha, numa sala sem televisão, sem telefone, sem visitas, sem nada meu, sem um documento que me identificasse (nada de pulseirinha). Supostamente, e sem se darem ao trabalho de ler toda a minha ficha, os senhores doutores terão achado que se tratava de um aborto mal feito, e eu que aguentasse para não repetir a gracinha. E quando finalmente me levaram para a sala de operações, gelada - cuja baixa temperatura se deve a desencorajar a proliferação de bactérias, como me explicou a enfermeira - o que se passou foi uma versão muito soft do que se deve passar nas parteiras de vão de escada deste país. Inesqucível e doloroso em todos os sentidos (quanto a isso, só posso aconselhar que, se perder uma gravidez, não faça nunca uma curetagem com anestesia local. È de uma violencia desmesurada e perfeitamente dispensável para quem já  está a passar por tudo aquilo que está a passar).

A segunda razão que enumero para a minha opinião, é, de facto, cronológicamente ( e não só...) a primeira.

Em Agosto de 1990, dei comigo grávida. Tinha 22 anos, e o namorado quando soube, demarcou-se da situação, e ainda me fez um belo discurso enumerando as mulheres que tinha amado na vida, sublinhando ( bem vincado ) que eu não era uma delas. A primeira vez que sugeriu eu abortar, disse que me acompanhava, mas dias depois disse que não o faria. Eu disse que não me importava, porque tal coisa não me passava pela cabeça.

Passei o primeiro trimestre a adomecer a chorar, e acordar a chorar (acho que foi aí que gastei as lágrimas, que chorar agora é um castigo...). Mas desde o primeiro segundo que me apaixonei pelo meu bébé.

Toda a gente achava que eu devia fazer um aborto. Tinha uma vida social preenchidissima, e de repente vi-me sózinha. A minha gravidez foi acompanhada com uma chamada mensal da João, uma grande amiga, que, embora separada por alguma distância, quis que eu soubesse que estava "do meu lado". O meu maior apoio emocional, a minha maior amiga, Isabel, internada com leucemia quando engravidei, faleceu na primeira semana de Janeiro de 1991. A minha mãe, que não falava comigo há um ano, continuou sem o fazer, e o meu pai (uma pessoa 20 valores), deu-me todo o seu apoio, bem como a minha irmã.

No dia 7 de Maio de 1991, às 7:45h, nasceu a Inês, linda, com 3.330 kg e 47 cm. Nunca me arrependi da minha decisão, nem nunca tive dúvidas. A minha filha ERA o que faltava na minha vida.

13, quase 14 anos depois, eis que posso fazer um balanço da situação: se voltasse atrás não mudava nada.

a) Consegui descobrir quem era mesmo meu amigo (ninguém);

b) Consegui começar de novo, uma vida nova, em que pude dar todo amor que tinha cá dentro a alguém que o merecia;

c) Pus a minha vida em prespectiva, e fiz o que estava ao meu alcançe para a melhorar; 

d) Conheci o meu fantástico marido, casei com ele, e depois veio o Tomás...

Dificilmente a minha vida podia ser melhor.

Ok, perguntam-se, onde é que está a mensagem pró-aborto? Não está.

Porque eu não sou a favor do aborto.

Sou a favor da despenalização do aborto.

Porque é essa a minha opinião: eu sou contra a ideia de aborto. Acho que um filho é uma benção, um presente da vida. Mas sei que neste mundo, entre o preto e o branco, há uma miríade de tons de cinzento, e há razões das quais nós, felizardas, não fazemos a minima ideia.


À partida, não é possivel que uma mulher passe por uma IVG como quem arranca um dente. Um aborto deixa sequelas, o "...e se..." acompanha-a durante pelo menos alguns anos, ainda que seja quando está a dormir... mas é claro que existem as aberrações. Aquelas pessoas para quem abortar é apenas (e perdoem a violencia da expressão), puxar o autoclismo. E essas, meus caros, não só vão continuar a fazer abortos, com ou sem a lei do seu lado, como nem sequer merecem ter filhos - podemos inclusive ver isso como uma benção para as pobres e inocentes crianças que são assim poupadas aos maus tratos e violência de todo o tipo, a que seria sujeitas... e há todos os outros casos. Casos de desespero, de dor, de becos sem saída, de pressões e atropelos, de falta de opções... de mulheres que, de facto, muitas vezes vão parar aos hospitais para fazer curetagens e são tratadas como eu fui, ou pior.

Porque é muito mais fácil julgar de que tentar compreender.

Angel

P.S. Há tanto mais para dizer, que eu não consigo escrever mais nada...

Porque é muito mais fácil julgar de que tentar compreender.

Angel

P.S. Há tanto mais para dizer, que eu não consigo escrever mais nada...

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