Do Natal: afinal o que é que resta???
As minhas melhores memórias de infância são dos natais. Não éramos muitos: os meus pais, a minha avó, eu e a minha irmã. Mas minha mãe imprimia uma atenção, carinho, quiçá ternura à quadra, que fazia toda a diferença.
Começávamos cedo, por ir comprar os enfeites daquele ano, coisa que fazíamos nos Grandes Armazéns do Chiado e Grandella. Bolas, 'lágrimas', sinos em vidro colorido, e mais uma ou duas personagens para enriquecer o presépio. O pinheiro era escolhido por nós e cortado pelo meu pai no que agora seria considerado uma afronta ecológica num local onde agora já nem existe um único pinheiro, substituídos que foram por construções...
Depois, enfeitávamos a árvore, desembrulhando todos os enfeites dos natais anteriores do seu papel de seda, manuseados como se fossem jóias, não fosse algum partir-se. E seguia-se o presépio, com os seus lagos de vidro espelhado encimados por pontes de barro colorido, casinhas, pastores, dezenas de ovelhas, e o estábulo, com, no centro, o menino Jesus mais delicado do mundo, nos seus 2 cm de corpinho e palhinhas.
Mais perto da data, subíamos a Rua do Alecrim, descíamos a Garret, e deliciavamo-nos com os bonecos movidos a eletricidade nas montras dos Grandes Armazéns.
No 24, acordava com o cheiro a aguardente que saia do gargalo de uma garrafa de vidro branco que tinha um rótulo com o desenho de uma lareira, diretamente para dentro o alguidar em que a minha avó amassava os sonhos a murro, sonhos a que ela chamava filhós. No final da tarde, o cheiro dos fritos invadia o ar, e era tão bom comê-los ainda quentes! O dia acabava com um sapatinho na chaminé, e a oração a pedir presentes.
A meio da noite éramos acordadas - o pai natal chegou, o pai natal chegou! - e em cima do fogão da cozinha estava um amontoado de presentes. Não me lembro se era difícil voltar a adormecer depois, só me lembro de tremer de excitação enquanto os abria.
Não me perguntem o que se comia ao almoço, ao jantar, que não faço qualquer ideia: a minha memória esgota-se nestas minudências
AGORA
O Natal é um dia. Ou pronto, se quiserem dois. No 24 é da praxe o bacalhau, as batatas e as couves - embora cá em casa EU não siga essa regra, e como sou eu que cozinho, vai de peito de peru recheado, e vai muito bem. À meia noite - que às vezes é às 10 ou 11 horas, que há sempre alguém cheio de pressa para se "pôr na alheta", trocam-se os presentes: um de cada vez, só se abre o seguinte quando o anterior foi apreciado por todos. No final, é pôr os 'ganhos' nos sacos, e voltar cada um a seu ninho - este ano a sogra ficou a dormir cá.
O almoço de natal é com o outro lado da família - a minha sendo (atualmente)Testemunha de Jeová, não celebra, pelo que somos nós: eu, o Vitor, o puto e a sogra (agora).
E pronto.
Uma semana inteira de trabalho que se consome em 3 ou 4 horas.
E a emoção, qual emoção?
E as estrelas nos olhos, quais estrelas nos olhos?
E as surpresas, quais surpresas? (hoje em dia não há como fazer surpresas, se calha ser o presente errado, é o cargo dos trabalhos...)
- Por isso, de ano para ano me sabe, cheira e sente cada vez menos a natal;
- Por isso, eu que adorava fazer embrulhos, compro sacos de papel;
- Por isso, há três anos que não espalho decorações de natal pela casa, e há dois que nem árvore faço;
- Porque o natal não é isto.
E o Natal não se compra. O Natal está cá dentro (ou não está, de todo).
E digam-me o que disserem, este ano só vi, em todo o lado, cascas vazias.