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Diário de uma "dona de casa" 2.0

... à beira de um colapso

Diário de uma "dona de casa" 2.0

... à beira de um colapso

Dom | 17.11.13

Não sei se querem saber. A verdade é que eu quero contar.

Fátima Bento

A minha vida de há uns meses para cá anda em loopings sucessivos, para a frente, para trás, e vai e vem e volta e eu aqui feita parva a cumprir aquilo que exijo de mim, que às tantas não sei se exijo porque acho que os outros esperam, ou se é algo que me faz mesmo falta, para provar qualquer coisa a mim própria, que nem sei bem dizer o que é.

E depois há aqueles momentos. Aquelas coisas que se nos metem pelos olhos dentro - o que é um milhão de vezes pior de que nos dizerem "devias..." porque quando nos dizem devias, a gente defende-se, esperneia, refila e refugia-se nos farrapos de ego que nos sobram para podermos continuar a procrastinar. Mas não nos dizem e aí é que são elas: a gente tem de se ver como os outros nos veriam se nos conhecessem como nós nos conhecemos, e se não tivessem um mínimo de compreensão e piedade, que aliás temos o fantástico hábito de deixar à porta quando se trata da relação de nós connosco próprias. E apontamo-nos o dedo. E espetamos o dedo no nosso peito a cada critica que descobrimos, que à conta de tanto contacto começa a abir ferida e nós até salivamos a antecipar o prazer de introduzir o indicador mais e mais dentro da ferida, até a dor se tornar insuportável, e a gente querer fugir de nós próprias e não conseguir, como nos pesadelos, sair do sítio.

E é nesses dias que os fantasmas saem todos de dentro dos armários, das gavetas das cómodas, das arcas antigas e bafientas a cheirar a naftalina, embrulhados nas culpas que mais não são que vestidos em desuso que não se desfazem nunca, por muito que o tempo passe, e por muito cavernosos que estejam os seus cranios e corpos ossudos. É nesses dias que o inferno se solta (e 'o Inferno somos nós', já alguém dizia), e nós nos sentimos como a Alice quando bebeu a poção para encolher: pequeninas, cada vez mais pequeninas, e as obrigações, e tudo o que deviamos ser capazes de cumprir, como aliás os outros, os outros todos conseguem fazer, ficam do tamanho do do Evereste e nós ali, sózinhas, cheias de vontade de fugir para dentro da cama, soterradas pela avalanche do edredon que nos protege dos papões que nos assolam a vida que corre dentro da nossa cabeça e à nossa volta.

É em dias assim que não é possível recordar que ainda há não-tanto-tempo-assim eramos fortes, tão fortes, capazes de segurar este mundo e o outro, e carregámos com tanta dor na mochila, e toda agente nos dizia és tão forte e eu não era capaz e tenho muito orgulho em ti, e és uma grande mulher, e és tão forte, e eu dizia se me visse de fora era minha fã, quem é que pode não admirar uma mulher assim, e... e depois ele tinha ido embora, e eu tinha ficado sózinha de familia, sózinha de amor, aquele amor que só os pais sabem e conseguem dar às filhas, mesmo sem dizer uma palavra, só por estarem, e tudo o que lhe dei e ele me deu nos ultimos tempos começou a diluir-se na espuma dos dias, e eu comecei a esquecer-me de tudo o que era e deixou de ser cedo demais, e comecei a sentir que fiquei sem, e sem tanto, sem o que receber e sem o que lhe dar, e tinha tanto para lhe dar e de repente ele deixou de estar ali para receber. E eu fiquei a olhar para as mãos, cada vez mais vazias, cada vez mais sózinhas, mais inuteis, e às tantas as mãos pararam, e deixaram de mexer, porque...porque nem sei porquê. E depois já não havia mais nada a não ser um vazio e o resto corria fora dessa bolha, como se houvessem duas realidades, como se eu fosse duas. E os outros e a minha vida passaram a ser um peso, um eu-não-quero; eunãoquero lavar a loiça, eunãosei o que hei-de fazer para jantar, eunãomeapetece limpar nada, eunãoqueroarrumar, para quê, para quem, e o vidro da bolha começou a ficar embaciado e eu deixei de ver bem, e quis fechar os olhos e não fui capaz, só se houvesse quem mos fechasse, para eu conseguir ao menos descansar das duas vidas, das duas Fátimas que já não conseguiam distinguir quem era quem e o essencial do acessório e se era ou não importante, presa ao que fiz e ao que agora não faço. Porque acho que quando ele morreu eu também morri um bocadinho. Acho que debaixo daquele pano verde, dentro daquela caixa de madeira foi um bocadão de mim que eu não sei como recuperar ou se alguma vez isso vai ser possível. Não conheço esta que aqui está no lugar que eu ocupei antes e que fala com a  minha voz e que veste as minhas roupas, e que conduz o meu carro e leva o meu filho ao dentista... não sei de onde ela apreceu, é uma boneca de papel, daquelas de vestir roupas de papel, que colava em cartão em pequena, para as conseguir por em pé e aguentarem sem se enrolar qual bicho de conta, é um alguém que se apanha chuva se calhar se desfaz como as coisas que não são, na verdade para ser, só vêm ocupar o espaço dos vivos, quando os vivos já foram.

E depois é assim o nada, um espaço vazio no comntinuum do tempo, e os outros, os que estavam do lado da que fui e nem sei onde pára agora não podem entender, assim como não veêm que esta já não sou eu. E esta que vê que as mãos já não fazem, que a cabeça já não pensa, que está enrolada sob uma colcha feita de retalhos de dor que estão alinhavados uns aos outros com fio cirurgico, e se limita a observar a incapacidade da outra que está no seu lugar e que se atrapalha a tentar desempenhar um papel do qual não recebeu informação suficiente, e faz asneira atrás de asneira, acumulando uma pilha de coisas nenhumas que vêm de tantos lugares e não vão para sítio nenhum.

Paz, sossego. Queria encostar a testa à mão dele e dizer-lhe como o fazia todas as noites antes de ir dormir, gosto tanto de ti, pai, Muito, muito.

- Eu também, nem sabes quanto...

E depois... depois acabou. 

Se calhar isto é fazer luto, ainda não sei e não sei se alguma vez vou saber...

(texto não editado)

2 comentários

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    Fátima Bento

    19.11.13

    Obrigada querida, beijo.
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